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domingo, 23 de janeiro de 2011

MINHA QUERIDA TIA LELETA





Ela agora está franzina e envergada pelo tempo mas ainda possui algum brilho no olhar, sempre atento de um azul quase celeste. Perto das comemorações de um século de existência, ela padece de uma doença letal que atingira uma das mamas, fruto talvez de não ter se casado e não ter tido filhos para amamentar. Não tivera filhos saídos de suas entranhas mas os tivera em muitos, por bondade e disposição de ajudar seus irmãos quando dela precisaram, mesmo com sacrifício de sua vida particular. Era assim a primogênita dos Gonçalves Dias. Filha de um proprietário de muitas terras, cuja principal atividade era a plantação de café, o Luiz Gonçalves Dias, mais conhecido como "Lulu Carapina" e de Albertina Dias.  Nasceu então Julieta, a tia Leleta, bem no início do século XX, quando o mundo ainda não havia conhecido os horrores da guerra e das calamidades que a sucederam. Desde cedo se destaca por sua beleza e disposição de ajudar a mãe no cuidado com os seus oito irmãos mais novos. Seu pai, homem culto, procura dar aos filhos a educação que lhe era possível, para tanto contrata professores particulares que ficavam morando na fazenda, com o intuito de instruir as crianças no saber. Mocinha se torna extrovertida e mais encantadora fazendo alguns guapos jovens suspirarem por sua atenção, principalmente quando ia a alguns bailes em fazendas perto das de seu pai, na zona rural de Duas Barras no Estado do Rio. Como passara o tempo de sua juventude e não tinha encontrado alguém a quem pudesse dedicar seu coração, se acomodou no estado de solteira, preenchendo sua vida em cuidar dos seus vários sobrinhos que foram nascendo. Com a morte do pai e a falta de quem pudesse levar avante de forma rentável a atividade agrícola, a sua mãe Albertina e alguns filhos resolvem mudar-se para uma cidade maior com o objetivo de terem uma vida digna. Os irmãos varões mais velhos que ficaram  para tocar a fazenda vão de mal a pior, dilapidando o patrimônio, vendendo vários itens a preço de banana, além de não pagarem os impostos por anos, o que levou a propriedade ser vendida em leilão público. Na cidade o serviço disponível era em fábricas e por não terem qualificação, Leleta e as outras irmãs se viram obrigadas a aceitar tal trabalho para se sustentarem. Como ela não tinha família ou dívidas para saldar podia dar-se ao luxo de trabalhar quando quisesse. Assim ela de vez quando morava com algum irmão que constituíra família e dela precisava de algum préstimo, o que fazia de bom grado. Quando meus pais se mudaram definitivamente para o Rio, ela nos acompanhou. Assim nossa família imediata era meus pais, meus irmãos e tia Leleta. Eu não a via como uma pessoa fora do nosso círculo familiar. Foram muitas as histórias vividas por mim e tia Leleta, mas uma está indelevelmente gravada. Um dia tia Leleta avisou: - Neste final de semana, vamos assistir ao programa do Paulo Gracindo na Rádio Nacional. Quando chegou o dia, partimos bem cedo para a Praça Mauá, onde adquirimos várias guloseimas e subimos no prédio conhecido como "A Noite" para assistirmos o tal programa musical. Que alegria foi presenciarmos ao vivo aqueles artistas que com suas canções embalavam as nossas mentes e corações. Não me recordo dos que lá estiveram com exceção de um: Cauby Peixoto. Não só pela sua voz aveludada ao cantar Blue Gardênia que foi um arraso mas principalmente pelo delírio de suas fãs, que chegavam as raias da loucura, quando ele terminava uma música. Foi inesquecível participar do auditório de uma rádio que entrou para a nossa história como a época de ouro do rádio brasileiro. Infelizmente uma tragédia se abateu sobre a casa do meu tio Gil, com a morte de sua esposa, levando tia Leleta para cuidar como se fosse mãe de seus cinco filhos. Sei que tia Leleta não é única. Que existem muitas tias leletas mundo afora, pessoas que praticamente dedicam suas vidas a ajudar e tornar mais felizes a vida de seus parentes. Só que a minha tia Leleta, como todos os seres são diferentes não existem dois iguais em suas particularidades, que possuem qualidades e defeitos, e ela também os tinha, por exemplo era só alguma irmã tentar se intrometer em sua vida e ela passava a soltar impropérios e palavrões, como um alto e sonoro pqp, de fato ela não tinha papas na língua. Aos noventa e seis anos, quando estava dormindo, o seu grandioso coração parou de bater deixando em nós seus filhos por afeição, uma grande saudade. Sei que a senhora agora não pode me ouvir mais, enquanto isto só me resta dizer: - Durma em paz tia Leleta, se eu for merecedor da vida eterna, te aguardarei ao amanhecer de um Novo Mundo para nunca mais nos separarmos.

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